Treinamento aumenta a capacidade de concentração e o autocontrole.
Estudantes se aprimoram com jogos de tabuleiro e de raciocínio.
Este é o terceiro episódio da série especial "Cérebro, máquina de aprender". Durante toda a semana, o Jornal da Globo mostrará que a aplicação da neurociência, a ciência que estuda o cérebro, é capaz de resultados excepcionais na vida das pessoas.
Como você lida com os desafios que surgem na sua vida? Foi com essa
pergunta na cabeça e a asa delta nas mãos que o recordista mundial em
número de voos duplos, o carioca Ruy Marra, se jogou, sem medo, em uma
área que tem muito a revelar: a neurociência, a ciência que estuda o
cérebro, aplicada ao esporte.
Ruy já voou com 20 mil pessoas e notou que elas reagem de forma
diferente na hora da decolagem. Ficou curioso para saber por que todo
mundo garante que vai correr na rampa, mas só 5%, de fato, correm para
valer.
O instrutor e o aluno dele têm que alcançar 19 quilômetros por hora
nessa corridinha antes do voo. Neste momento, o cérebro joga adrenalina
no sangue. O coração começa a bater mais rápido. Os pulmões também
passam a respirar mais rápido para gerar mais oxigênio. Todos os
músculos do corpo se contraem para formar uma espécie de couraça de
proteção. Agora, sim, o corpo está preparado para começar o voo.
Ruy quis saber o que se passa na cabeça das pessoas quando estão diante
de situações de tensão. Fez uma pesquisa com 2 mil pessoas que voaram
com ele durante dez anos. “Eu comecei a encontrar padrões de
comportamento sob estresse. Na praia, eu tinha um questionário sobre
tônus afetivo, sobre pai e mãe, matriz emocionais parentais, interações
sociais”, diz.
Ruy descobriu que a reação de cada um depende do afeto que essa pessoa
recebeu na infância. Neurocientistas afirmam que as trocas afetivas
entre pais e filhos no começo da vida são fundamentais para a formação
do sentimento de segurança nessa criança no futuro.
Ruy, que é neurocientista, estudou muito e percebeu que poderia ajudar
atletas a melhorar seu desempenho trabalhando o cérebro deles. “Imagina
que você está na área de aquecimento agora. Trabalhando a respiração.
Focada nos movimentos. Que você vai executar durante a luta. Imagina as
adversárias que você vai enfrentar”, diz à judoca Kelly Rodrigues.
Parece um joguinho bobo, mas fez toda a diferença na vida de Kelly.
Moradora da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior favela da América
Latina, ela começou a lutar há cinco anos. O início foi bem difícil.
“Ficava nervosa, tremendo, e, na hora de lutar, não conseguia fazer,
acabava caindo. Quando o Ruy começou a ajudar a gente com respiração, eu
comecei a ter mais foco, conseguia escutar mais o técnico, que não
conseguia antes”, afirma a judoca.
A Confederação Brasileira de Judô também usa neurociência no
treinamento de seus atletas, e teve resultados. O judoca Rafael Silva, o
Baby, ganhou bronze em Londres. “O esporte é feito de detalhes. Todo
mundo chega muito treinado, mas, na hora, ali, o mental vai definir a
luta, quem está melhor preparado mentalmente”, diz. Fazer parte da
seleção brasileira em 2016 é o sonho da Kelly, e ela está lutando muito
pra conseguir.
Os neurocientistas usam um aparelho chamado biofeedback nos atletas. Um
sensor é colocado na orelha dos judocas para medir a frequência
cardíaca. Quando estão nervosos, ansiosos, o batimento fica irregular.
Para evitar isso, os atletas aprendem uma técnica de respiração para
treinar o coração, que envia sinais elétricos para o cérebro. São esses
sinais que fazem a asa delta do joguinho ganhar altura e velocidade.
O treinamento aumenta a capacidade de concentração e o autocontrole dos
judocas. Explorar a pausa é o que fazem também os alunos de uma escola
municipal de Caucaia, cidade que fica na região metropolitana de
Fortaleza. “Antes eu fazia as contas sem pensar, agora eu penso como o
método do semáforo, que a tia ensinou: tem que parar, pensar e agir”,
diz o estudante Alexsandro Garcia Pereira, de 11 anos.
A metodologia do semáforo é simples e muito funcional. “Quando a gente
está na aula de história e geografia, eles param para pensar. Não é que
nem antes, que eles diziam qualquer resposta para ser engraçado”, afirma
a professora Valdenir Cavalcante.
As crianças são incentivadas a fazer uma tarefa de cada vez.
Neurocientistas são unânimes em afirmar que ninguém consegue prestar
atenção em duas coisas ao mesmo tempo.
“Quando a gente diz que consegue ler e ver televisão ao mesmo tempo,
não consegue. Seus olhos podem continuar se movendo na página, mas ou
você registra o texto que está ali na frente dos seus olhos, ou você
registra o texto que está ouvindo da televisão. As duas coisas ao mesmo
tempo nao acontecem”, afirma a neurocientista da UFRJ, Suzana
Herculano-Houzel. “O que a gente consegue fazer é alternar entre duas
coisas”, diz.
A escola de Caucaia é uma das mais de 600 que trabalham com um método
israelense, baseado na neurociência, trazido ao Brasil pela pedagoga
Sandra Garcia. Eles usam jogos de tabuleiro e de raciocínio.
“Eu aprendi a raciocinar mais, a pensar mais, e melhorei muito nas
matérias”, diz a estudante Michele Martins.“Eu não conseguia pensar,
fazia tudo ligeiro, aí eu tirava nota baixa. Agora, eu começo a pensar e
fazer as contas direito”, afirma o estudante Francisco José Guimarães.
Eles têm apenas uma aula por semana de 50 minutos com os jogos e acabam
levando o que aprendem para as outras matérias. “O jogo usa o
raciocínio, você encontrar uma outra maneira de resolver uma questão. É o
que eu sempre digo para eles, que não existe só uma resposta. Você não
pode chegar à resposta só por um caminho. São vários caminhos para
chegar a uma mesma resposta”, afirma Valdenir.
Não é só na escola que eles aprendem. Os estudantes ganham os
tabuleiros e levam para casa. Alexsandro, aluno do colégio há quatro
anos, mora com a família na zona rural de Caucaia. “Eu perdi a vergonha,
tenho mais coragem de ler, falo mais com as pessoas. Ler nos ajuda a
ser alguém na vida”, diz.
Reportagem: SÉRIE CÉREBRO - JORNAL DA GLOBO
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